Em julho de 2023 recebemos um convite para participar do encontro Cooperativismo de Plataforma: Quais as Políticas Públicas Possíveis?, promovido pela Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária (SENAES/MTE), em conjunto com o laboratório de pesquisa DigiLabour, Fundação Rosa Luxemburgo e Observatório do Cooperativismo de Plataforma. Esse relato busca sistematizar as trocas realizadas no âmbito da nossa participação no evento, além de compartilhar os desdobramentos do assunto que pudemos acompanhar até o momento presente.
A Cooperativa EITA no debate sobre Cooperativismo de Plataforma
Em meados de 2020 um grupo de trabalhadoras e trabalhadores que buscavam o desenvolvimento de uma plataforma como ferramenta para um serviço cooperado de entregadoras e entregadores. Naquele momento, o diálogo focou nos desafios inerentes ao desenvolvimento de uma plataforma de tal porte que demanda uma estrutura de suporte e manutenção. A organização do coletivo como uma cooperativa era uma intenção clara, ainda que não esclarecida a complexidade de um modelo de negócios que fosse capaz de considerar, na formação laboral da cooperativa, os trabalhadores e trabalhadoras responsáveis pela sustentação e manutenção da ferramenta tecnológica. O diálogo foi muito interessante, mas não avançou para um trabalho da EITA com o grupo, que seguiu com os esforços de pesquisa para estruturação de uma ferramenta e base organizacional para a realização do projeto.
Em 2021, a EITA participou de uma etapa da série de encontros Cooperativismo de plataforma: uma opção possível?, realizado pelo SESC Avenida Paulista. Estivemos no encontro Pagando o justo pelos produtos dos povos e comunidades tradicionais brasileiros, onde apresentamos o aplicativo Castanhadora, criado pelo Instituto Internacional de Educação no Brasil. Já em 2022, o desafio retornou para o horizonte da EITA. Por um lado, o coletivo Señoritas Courier nos procurou para dialogar sobre uma plataforma para gerir seu trabalho de entregas com bicicletas. Por outro, participamos de uma mesa de debate sobre Tecnologias Livres e Cooperativismo de Plataforma, organizado pelo laboratório DigiLabour. Fomos estudar o tema proposto e percebemos que a nomenclatura, assim apresentada, buscava definir coletivos autogestionários (cooperativas) que se organizavam a partir de plataformas digitais de propriedade compartilhada. Um conceito que incluía, de certa maneira, a Cooperativa EITA como um exemplo possível de cooperativa de plataforma. Esta definição ainda é controversa e não intencionamos, aqui, avançar em uma elaboração sobre o assunto. Neste mesmo período, a EITA foi mapeada pela Rede Conecta (atual Radar Coop) como uma cooperativa do campo de tecnologia, inovação e de plataforma.
Algumas pessoas da cooperativa seguiram participando de debates sobre o tema, como o Ciclo de Conferências sobre Tecnologias da Informação e Comunicação na Construção do Cooperativismo Solidário de Plataforma, organizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Tecnologia para Desenvolvimento Social (NIDES-UFRJ) e a conferência Owining the Future (Domine seu futuro), realizado no Museu do Amanhã, cidade do Rio de Janeiro, e organizado pelo Consórcio de Cooperativismo de Plataforma (PCC) e pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS).
Ainda que pontuais, as interações com o tema Cooperativismo de Plataforma seguiram inserindo a EITA nessa construção, que discute elementos que vão desde o desejo e o incentivo para a formação de coletivos autogestionários, passando pelas problemáticas do debate a cerca da soberania digital e da propriedade compartilhada dos meios digitais de produção (e serviço), a ser gerida pelas próprias trabalhadoras e trabalhadores.
Por fim, em julho de 2023 recebemos um convite para participar e compartilhar nossa experiência, sobre o cooperativismo o uso de tecnologias livres, na oficina ‘Cooperativismo de Plataforma: Quais as Políticas Públicas Possíveis. Promovido pela Secretaria Nacional de Economia solidária (SENAES) em conjunto com o laboratório de pesquisa DigiLabour, a Fundação Rosa Luxemburgo e o Observatório do Cooperativismo de Plataforma. O evento aconteceu em Brasília e contou com a participação de diferentes iniciativas da economia solidária e de representantes de movimentos sociais. Nas atividades, foram debatidas perspectivas para a criação de políticas públicas intersetoriais. Confira o relatório elaborado pela Fundação Rosa Luxemburgo, com a relação de palestrantes e links para visualização das apresentações.
O encontro
O evento aconteceu na Escola Nacional de Administração Pública, em Brasília, nos dias 19 e 20 de julho de 2023. O convite para a participação da cooperativa foi enviado, para Camilla de Godoi (designer e sócia-cooperada desde 2020) pela Secretaria Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego. Estamos acompanhamento os desdobramentos da pauta e decidimos fazer esse relato para compartilhar as trocas realizadas no âmbito da nossa participação.
Entre trabalhadoras e trabalhadores, pesquisadoras e pesquisadores de diferentes universidades, movimentos sociais e integrantes da gestão pública, estivemos presentes para apresentar a experiência e os desafios da EITA como uma cooperativa de trabalho que desenvolve tecnologia livres em diálogo com as demandas de diferentes organizações populares da sociedade civil. Dividimos o espaço com representantes de diferentes coletivos: Aline OS, da Señoritas Courier; Gabriel Simeone, do Núcleo de Tecnologia do MTST; Nilce de Pontes Pereira dos Santos, do Quilombos do Vale do Ribeira; e Cinthia Mendonça, do Caipira Tech Lab. Todas/os, à sua maneira, compartilharam suas experiências coletivas, buscando pontuar a complexidade do tema diante das diferentes realidades inseridas no contexto da Economia Solidária. Dentre os grupos presentes na primeira mesa de debate, a EITA era, naquele momento, o único juridicamente formalizado como uma Cooperativa de Trabalho. Nesse sentido, focamos em apresentar as características da nossa prática autogestionária, sem deixar de reforçar a falta de incentivo político e financeiro que o atual arcabouço tributário oferece para a formalização legal de cooperativas.
A mesa seguinte foi marcada por relato de representantes de movimentos e coletivos que atuam na luta pelos direitos de trabalhadoras e trabalhadores: Luciana Mendonça, do Movimento dos Trabalhadores Sem Direitos; Pablo Bandeira, do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos; Márcio Guimarães, da Comobi; Vivian Alves Pacheco, do Programa Coopera Araraquara; e Abel Santos, da Associação dos Trabalhadores por Aplicativos e Motociclistas do Distrito Federal e Entorno. Os depoimentos enfatizaram os desafios econômicos e sociais enfrentados historicamente pela classe de trabalhadores e trabalhadoras informais do país. Na mesa, surgiram críticas sobre a complexidade pela qual o assunto vem sendo abordado, por meio de uma perspectiva tecnológica que parece reduzir os problemas da precarização do trabalho pela ocorrência da plataformização.
Fechando o primeiro dia de apresentações, Joyce Souza, da Universidade Federal do ABC, Laila Almeida, do coletivo MariaLab e Natália Lobo, da Sempreviva Organização Feminista (SOF), reforçaram as problemáticas da atual infraestrutura digital utilizada tanto pelo governo quanto por instituições de pesquisa e sociedade civil. Ao abordarem o assunto da soberania digital e cultura livre, as apresentadoras enfatizaram a importância da construção de infraestruturas próprias, atreladas às questões de organização e autogestão, para que seja possível a criação de plataformas democráticas e de domínio de trabalhadoras e trabalhadores. A retomada do debate sobre o Marco Civil da Internet, com a devida regulamentação de plataformas mantidas por grandes empresas (Big Techs), foi um dos assuntos tratados. As apresentadoras explicaram como o uso de plataformas estrangeiras e o armazenamento de dados em países hegemônicos, entregam, para esses países, a capacidade de monitoramento e análise de contextos do território nacional. A capitalização dessas informações fazem parte de estudos sobre colonialismo de dados.
O segundo dia iniciou com a apresentação de Rafael Grohmann, um dos responsáveis pela idealização do encontro e pesquisador no Observatório do Cooperativismo de Plataforma. Com a oficina “Imaginar Tecnologias Alternativas”, Grohmann apresentou experiências e iniciativas de outros países, como a Asoclim, uma cooperativa de trabalhadoras domésticas do Equador, a norte americana Driver‘s Seat Cooperative, de entregadores e entregadoras, a Federação Argentina de Cooperativas de Trabalho em Tecnologia, Inovação e Conhecimento (FACTTIC), entre outros coletivos e iniciativas. De acordo com Grohmann, o Brasil é um dos países do mundo que mais tem discutido o tema da plataformização do trabalho. O pesquisador acredita que, com a elaboração de políticas públicas voltadas ao impulsionamento de cooperativas, federações e infraestruturas compartilhadas, o país assumiria um protagonismo no assunto.
Em termos de princípios e desafios para o cooperativismo, Grohmann pontuou que “as reflexões não apresentam nada de novo”, reforçando a importância de pensar soluções que vão além de um mero tecnofeticismo. Victor Marques, da Universidade Federal do ABC, foi mediador da apresentação e relembrou a importância do cooperativismo como uma ferramenta de luta dos(as) trabalhadores(as). Paul Singer foi lembrando como referência para os debates de um encontro sediado pela Secretaria de Economia Solidária.
Em seguida, grupos de trabalho foram formados para a realização da plenária de debates e de propostas para encaminhamentos. Os grupos reuniam representantes dos coletivos, movimentos e entidades do governo presentes.
Iniciamos com a fala de Joana Varon, da Coding Rights, que apresentou aos presentes a Cartografia da Internet e ficou também responsável pela facilitação da primeira atividade, com o Oráculo de Tecnologias Transfeministas. A dinâmica se baseava em um jogo de cartas que apresentava Situações, Territórios e Objetos a serem combinados com Valores como Solidariedade, Autonomia, Interoperabilidade e Interseccionalidade, entre outros, para a criação de uma nova tecnologia. Os resultados não se aplicavam diretamente ao assunto discutido, mas os novos conceitos, apresentados pelas cartas, contribuíram para um diálogo divertido e interessante entre as pessoas presentes.
Na sequência, foram mantidos os grupos de trabalho com a proposta de gerar ideias para um “programa de cooperativas solidárias de plataformas”. Desta vez, foram formuladas diversas recomendações e propostas objetivas para políticas públicas de incentivo ao cooperativismo e à soberania digital, elementos-chave que atravessam o debate sobre o trabalho por plataformas.
Encaminhamentos e contribuições das participantes
Socializar as contribuições e encaminhamentos deixados pelo grupo de trabalho presente no evento é de grande importância para um acompanhamento da pauta pela sociedade civil.
Uma recomendação importante foi a criação de um comitê gestor misto, incluindo representantes do governo e da sociedade civil, para a definição de uma política de cooperativismo de plataforma. Além desta, sugestões de diversas naturezas foram trazidas, como a isenção tributária para a contratação de cooperativas, a priorização na política de compras públicas e a redução da carga tributárias para cooperativas, considerando seus diferentes tamanhos e estágios de desenvolvimento). Foi pontuada a necessidade do incentivo ao cooperativismo solidário e, ainda, a retomada do apoio à incubadoras de cooperativas populares para a prestação de assessorias administrativa e contábil. Em termos de legislação, também surgiram a importância da aprovação do PL 6606/19, a regulamentação dos bancos comunitários de desenvolvimento e a cobrança de tributos para grandes empresas de tecnologias (também chamadas de Big Techs), como mecanismo para levantamento de fundos para a realização dos programas de incentivo. Recomendações relacionas à reconstrução da Política Nacional de Economia Solidária também apareceram.
Com relação ao tema da tecnologia e soberania de dados, foram propostas a criação de centros de tecnologia e capacitação técnica, políticas para a inclusão da população jovem e rural no desenvolvimento de tecnologia, incentivos e/ou isenção de impostos para o desenvolvimento de infraestruturas comunitárias de armazenamento de dados, o uso e o desenvolvimento de softwares livres pelo governo, entre outras propostas. O incentivo às atividades de extensão para a cooperação entre universidades e grupos da sociedade civil, para o desenvolvimento de infraestrutura e capacitação técnica, também apareceu entre as propostas.
Sugestões mais específicas com relação ao trabalho de entregadoras e entregadores de aplicativo também não ficaram de fora das recomendações. “Uso de espaços públicos como pontos de apoio a entregadores e entregadoras”, “criação de leis que proíbam o desligamento do trabalhador de aplicativo sem uma justificativa prévia”, “transparência” e “humanização das interfaces” estiveram entre os elementos colocados.
A sistematização das propostas evidenciava o volume e a qualidade das recomendações feitas pelas pessoas presentes. Para fechar o evento, Gilberto de Carvalho, atual secretário de Economia Popular e Solidária, destacou a importância desse tema para a secretaria e para o atual governo, chegando a mencionar que negociações tripartites vem sendo feitas com as empresas de aplicativos.
Desdobramentos da oficina
Passado alguns meses desde a nossa participação no evento, fomos atrás de algumas das pessoas presentes para acompanhar os desdobramentos da oficina.
O ano de 2023 foi o início de um novo governo em nível federal. Considerando que a gestão anterior reduziu e desmontou as ações voltadas para a economia solidária e para o software livre em diálogo com os movimentos sociais, a realização da oficina foi um passo importante para coletar propostas e colocar em diálogo os vários setores do governo federal com as diversas iniciativas de trabalhadoras e trabalhadores, movimentos populares, coletivos autogestionários e pesquisadoras/es da pauta.
Como não recebemos nenhuma atualização ou parecer com relação às recomendações apresentadas pelos grupos de trabalho, entramos em contato com servidores da SENAES e do MTE para buscar novidades sobre o assunto. No relatório elaborado, percebemos que foram destacadas poucas, ou no mínimo, generalizadas, propostas dentre as centenas de recomendações apresentadas na atividade. A nível do governo, ainda não identificamos desdobramentos a partir dos encaminhamentos deixados. A última notícia que tivemos foi de que Carlos Grana é o novo responsável coordenação da pauta dentro da diretoria da SENAES.
Vale salientar que, antes da oficina, foi reconhecido um Grupo de Trabalho para propor regulamentação de serviços em plataformas digitais onde possivelmente o tema do Cooperativismo de Plataforma também está colocado, uma vez que há participação ativa do Secretário Nacional de Economia Solidária, de frentes de trabalhadoras e trabalhadores e a Organização das Cooperativas do Brasil (OCB).
Sobre a OCB, é importante ressaltarmos que o movimento de economia solidária questiona a unicidade de filiação exigida pela Lei Geral de Cooperativas. Há anos, está em tramitação no Congresso projeto de lei para alteração do artigo art. 107 da Lei nº 5.764/1971, além de outras alterações. No entanto, o governo federal no início de 2023 divulgou o Parecer 00002/2023/DECOR/CGU/AGU que exige a filiação das cooperativas à OCB como etapa para contratação pelo governo federal. Na prática, há anos que, ao se formalizar uma cooperativa, esse vínculo e filiação não é exigido pelas Juntas Comerciais. O parecer é uma limitação para a relação econômica entre o governo federal e as cooperativas, seja para o desenvolvimento de plataformas ou não. Mesmo com todas tentativas de denúncia junto ao governo, o parecer segue ativo.
Um desdobramento da oficina foi a dissertação de mestrado Resgate ao espírito de Palmares: do cooperativismo de plataforma às organizações de propriedade das trabalhadoras e trabalhadores como forma de resistência, de Emanuele de Fátima Rubim Costa Silva. A pesquisa analisou as iniciativas coletivas que estiveram na oficina e concluiu que coletivos, como a EITA, tem potencial de promover trabalho protegido, viabilizando melhores condições de trabalho, amenizando a superexploração laboral, sem romantizar seu papel” (SILVA, 2023, apresentação oral). Durante sua defesa de mestrado, a pesquisadora ainda enfatizou que a única iniciativa presente na oficina que relatou garantir os direitos previstos na Lei de Cooperativas de Trabalho é a EITA. Para além destes direitos, temos exercitado ampliar os direitos que acessamos a partir de nosso trabalho, o que é um desafio e um bom debate para construção de políticas públicas.
Um acontecimento que merece ser celebrado foi a formalização jurídica da Señoritas Courier como uma cooperativa, notícia recém anunciada pelo coletivo. Agora o grupo, formado por mulheres cis e pessoas trans e que vem que oferecendo o serviço de cicloentregas já há 4 anos se une também às nossas lutas pela ampliação de políticas de incentivo a um cooperativismo solidário.
Outra novidade foi a publicação do livro Trabalho por Plataformas Digitais, de Rafael Grohmaan, que reúne suas pesquisas sobre cooperativismo de plataforma e oferece uma introdução crítica a este movimento que vem se organizando no país.
Seguimos acompanhando os desdobramentos da pauta junto aos governos estaduais e federal. De olho, principalmente, nos processos participativos que vem sendo elaborados com as Conferências Livres em Tecnologia Social, Economia Solidária e Conferências Temáticas em Tecnologia e em Ciência, Tecnologia e Inovação. As reuniões estão acontecendo em âmbito local como preparatória para as Conferências Nacionais – a acontecer, em maioria, no primeiro semestre do ano de 2024.
Em paralelo à isso, seguimos. Com as nossas atividades, exercitando a ampliação dos direitos que acessamos a partir de nosso próprio trabalho, o que é um desafio e um bom debate para a construção de políticas públicas de apoio ao cooperativismo no país.